Loucura sã

Talvez seja da idade ou talvez tenhas sido sempre assim e agora detectas mais facilmente, talvez seja a Primavera a chegar e já tens os sonos trocados, talvez seja o teu retomado apetite voraz por estabelecer novos recordes num qualquer pedómetro imaginário…a verdade é que, na primeira volta, ainda havia estabelecimentos comerciais fechados (não é verdade mas dá um ar mais dramático ao texto) , a chuva ameaçava o caminho e o facto da tua rua estar fechada era um presságio!

De fato impermeável completo e de sapatilhas de andar eis a maneira ideal de combater insónias inoportunas! Comprado um pão para o caminho, duas garrafas de água e eis o vosso humilde narrador e vosso herói em tantas aventuras passadas a caminho dos primeiros cinco quilómetros do dia.

O Carlos Avelino já estava aberto e, uma vez ultrapassado, já se pode tirar a máscara. Ritmo endiabrado na recta e uma mudança de direção para a direita de maneira a evitar um transeunte que passeava o seu cão. Após a curva temos cerca de cem metros de recta seguidos por quinhentos metros a desafiar a morte – perante o trânsito de frente ou o esgoto à esquerda. O coração palpita, as pernas adquirem um ritmo próprio, há um plano de emergência que implica um salto lateral de cerca de dois metros (algo impossível de executar mas não deixa de ser um plano…). 

O descanso, após a “recta da morte”, é feito em terreno firme e seco. Umas inspirações fundas pelo nariz e expirações pela boca, o coração que sorri dizendo “Ainda não foi desta!”, com o “ainda” a fazer sobressair o sarcasmo do músculo.

Iniciamos a recta da praia, saindo da parte citadina do circuito e imergindo na natureza que ainda resta no concelho. Rodeado de arbustos, relva, pólen que voa e que eu tenho que evitar inspirar, sem nunca deixar de me deslumbrar com todo aquele tom amarelo vivo que voa para polinizar. 

Acordo do meu sonho acordado quando o passeio acaba e a areia começa. São cerca de vinte passos na areia e eis-nos perante o enorme oceano atlântico. Hora de inspirar profundamente o ar que a jet stream empurra para a Europa.

Um ligeiro travo a maresia na garganta, uma tossidela provocada para aferir da qualidade da higiene pulmonar, um sorriso aberto numa cara agora ligeiramente húmida (de um pouco de chuva….drama, lembrem-se sempre!), um bater dos pés de maneira a sentir que ainda estão na extremidade do corpo.

Tal como num rally também aqui temos mudanças de piso e se bem que eu não troco de calçado – aguando da mudança do cimento para a areia e, posteriormente, piso de madeira – profissionais do ofício haverá que o façam. A passada ainda é firme e já terminaste a primeira garrafa de água.

Aproximas-te da parte mais viva de Espinho e, ao longe, observas os pescadores que consertam as redes – corpo curvado, caras muito bronzeadas, uma destreza sem igual que é repetida até toda a rede estar vista, revista e aprovada. Mulheres com indumentárias de viuvez misturam-se com jovens com indumentárias de malvadez, jovens distanciados bebem um copo, pescadores reunidos trocam impressões sobre um mar que está mais energético do que o habitual. Respiramos profundamente aquele misto de conhecimento marítimo profundo, maresia, vozes com tons e palavras tão castiças de escutar…entramos novamente em terreno urbano.

Evito a esplanada indo pelo lado nascente da rua 2 e subo a rua 23 com cara de poucos amigos, para voltar na rua 20 e começar a segunda volta do trajecto!

Não é rotina, é usufruir da natureza, de todos os tipos – 11/2/2021

May be an image of body of water and nature