O processo assemelha-se muito ao estar debaixo de água, sem respirar, até ao limite. O jornal diário – que já só os velhotes compram, de acordo com o senhor da papelaria que os vende – é, tal como todos os outros, constituído por diversos artigos, divididos por secções.
Sentado na mais do que suspeita esplanada de sempre, já depois de ter atravessado a parte alta da cidade para comprar o diário, dou por mim a descascar um queque com uvas passas e a ler a última página. O descascar porque não consigo comer o queque às trincas – preferindo ir arrancando pequenos pedaços que vou mastigando – e a última página porque, apesar de todos os cuidados no tratamento do jornal, como se de o melhor livro se tratasse, poderei eventualmente ter gordura nos dedos e assim só afectarei aquela parte.
No intervalo de um dos curtos artigos contidos nessa última página faço uma pausa, como que interrompendo a apneia de leitura em que estive imerso, e ergo a cabeça para observar o que me rodeia, antes da apneia no artigo seguinte. Nas costas de alguém que entra, e pedindo licença para entrar, está uma beldade cujo nome não recordo e que abre um sorriso daqueles que o coração detecta. Não é só um sorriso, seguido de um bom dia, há ali mais substrato do que é dado a ver.
O cérebro, normalmente tão ausente nestas circunstâncias, tenta buscar informação adicional no catálogo da memória e nenhum dos resultados que retorna justificam a presença dela ali – não é vizinha, o último local de residência em que a coloca é longe dali e, ironicamente, tem um estabelecimento comercial com o mesmo tipo de serviços mesmo ao lado, o contacto visual continua durante a consulta da base de dados cerebral. Sentes-te como que observado e despido, o que te obriga a olhares para ti próprio e constatar que o calção de banho, as xanatas e a tshirt estão longe de constituir um atentado ao pudor.
Quando ergues a cabeça novamente tudo parece não ter passado de um sonho. Talvez um efeito secundário da apneia, uma visão pela ausência de oxigenação do cérebro, um devaneio – fruto de uma uva passa psicadélica que não foi detectada no controle de qualidade. Olhas para o cartoon da última página e sorris com a piada que ele contém, ergues a cabeça como que perguntando se de facto tudo aquilo foi real, sorris com a ideia de toda a interação. Estás imerso num questionário imaginário para o qual tens todas as respostas.
Ela sai, e agora já não há dúvidas, outras pessoas, nada que perturbe o teu campo de visão. Sentes que a tua cara se prepara para derreter, num semblante enamorado e totalmente rendido a esta mulher que já não vias há uma década ou outra. Fazes um esforço por contrariar esse processo e sai-te um sorriso, ainda mais derretido do que o pensamento do semblante enamorado – que é gerido pelo coração e desprovido de racionalidade – impossível de contrariar. O raciocínio parece criar um outro eu que, tentando colocar-se entre ti e ela, te interroga “Olha que figurinha…”, “Disfarça!!!” (com uns estalos imaginários de quem tenta acordar outrém de um transe), num esforço inútil do racional perante o emocional.
Os olhos estão rendidos, as bochechas roseadas, o sorriso é a soma da felicidade com o total alheamento do racional, o corpo parece abandonar-se num abraço que, por agora metafísico, mas que urge concretizar. Há ainda um olhar brejeiro, a tirar as medidas à traseira da visão, e um olhar de 360 graus – apenas para constatar que toda a ação foi visualizada por duas funcionárias do estabelecimento, que sorriem com um olhar de quem finge nada ter visto…
Sensações imaginadas – 24/8/2024