Ao longe, muito longe, era a mais bela criatura que o oceano continha: a braçada, os contornos do rosto, a forma como as ondas pareciam ajustar-se conforme ela se movimentava, os sons – inaudíveis mas passíveis de serem imaginados, os olhos que se fundiam no objecto ou pessoa que observava…era uma sereia digna do mais belo conto de fadas.
Carecendo de conhecer a barbatana dela, para fins puramente científicos, nadei como nunca havia nadado antes. Livrei-me de todas as posses terrenas e abracei as ondas, uma após a outra, até a alcançar. A distância era muito grande e a comunicação que tínhamos era feita através de sons – como um sonar – que, apesar da distância estar a encurtar, apenas fazia o sentimento crescer.
Por entre piropos via sonar e braçadas para a alcançar havia que improvisar um primeiro beijo que fosse memorável e, como se tivesse num sofá marítimo, pedia-lhe que fechasse os olhos e descontraísse. Era tudo novo, tudo diferente, mais sentimento que racional e, apesar de toldado pela irracionalidade amorosa, comecei por beijar o cimo do pescoço, bem juntinho ao lóbulo da orelha esquerda dela.
Expressei o único desejo que, na altura, tinha: vamos focar em conhecermo-nos! O esforço tinha que ser mútuo e não envolveria qualquer contrapartida, de parte a parte. Tinha tudo para ser perfeito, brilhante, inalcançável para o comum dos mortais – algo que o sentimento, naquela altura, não permitia que fossemos. Um tratado de entrega total, mútua e sem segredos, como se de uma fusão de dois corpos num só se tratasse.
As ondas começaram a ser tão grandes quanto o mar da Passagem de Drake e, fruto da proximidade da Antárctida, tudo arrefeceu – excepto o sonho que, cuidadosamente, foi colocado numa unidade de armazenamento mental – bem acondicionado e refrigerado – num canto do seu coração irreflectido. Fez um reboot amoroso e racional e voltou ao ponto de partida, conforme era no período anterior ao golpe de vista que o fazia ter visões de sereias.
Caixinhas de histórias – 15/5/2024
