A casinha.

A fachada impõe-se perante uma sucessão de outros edifícios e, sem dúvida, desperta a curiosidade daquele investidor que, tendo o coração cheio de amor para investir, pretende uma casa onde o aspecto exterior também tem o seu valor.

Assim que sobe as escadas exteriores o autor repara que há uma série de caminhos pelos quais pode começar – uma espécie de encruzilhada que não o intimida mas, pelo contrário, o estimula. Sente-se seguro mas não deixa de averiguar se tudo não passará de uma fachada – uma antecâmara interior que evita, de forma subtil, qualquer forma de responsabilização do comportamento do arquitecto.

Vê um WC à direita e, sem hesitar, entra e lava a cara das impurezas do exterior – numa espécie de gesto educado face ao desconhecido perante o qual se pretende apresentar da melhor maneira – não que exista a necessidade de mascarar algo mas, bem pelo contrário, porque foi educado de maneira a nunca julgar sem conhecer o réu e a apresentar-se sempre de face lavada e descoberta de qualquer preconceito.

Saiu do WC e, virando à direita, dirigiu-se a um espaço aberto onde sentiu a segurança necessária para dizer tudo o que pensava. Os alicerces da casa tremiam, pois nunca antes haviam enfrentado a verdade nua e crua – era a primeira vez que ouviam a palavra responsabilidade! O autor não pretende derrubar os alicerces mas tão só e apenas aferir se, apesar de a nova realidade os obrigar a ser responsáveis, tal é suficiente para que a obra se mantenha firme por muitas gerações! Ele sabe a resposta!

Os alicerces desconfiam – não que tenham nascido assim mas, infelizmente, foram desenvolvidos para serem assim. O humilde narrador, continuando virado para norte, dirige-se a uma porta, pelo seu lado direito, e atravessa a cozinha até chegar a um degrau que outrora foi seu confidente.

Aquele degrau, honesto como pedra, recordou-o de alguns detalhes – do melhor do mundo ao pior. A pedra e respectiva temperatura eram o tónico para a reflexão que já inúmeras vezes havia sido feita sem que a casa perdesse toda uma série de defeitos de construção que, parecia, se orgulhava de ter ou, num orgulho desmedido, por não obedecer a nenhum arquitecto – se tornava algo tão idiota e infantil que, por mais que se esforçasse, não encontrava palavras para descrever.

Respirou fundo, olhou num ângulo que abrangia todo o seu campo de visão, e levantou-se para sair. O agente imobiliário ainda lhe disse que faltava ver o andar superior mas a qualidade dos alicerces continuava a deixar demasiado a desejar pelo que sugeriu algo ao vendedor: coloque toda a honestidade neste seu empreendimento e eu serei o primeiro a apresentar-se para nele embarcar – da mesma forma que o caminho marítimo para a Índia nos mostrou o Brasil, também aqui o erro passado poderia constituir o grande feito do futuro!

Abandonou, relutantemente, o degrau de pedra e, levando consigo a bituca do cigarro, levantou-se e atravessou a cozinha, não sem antes olhar para a placa do fogão e, até aí, recordar que tudo o que havia feito havia sempre sido classificado como um erro, uma culpa que não transportava mas que recordava lhe haver sido sempre imputada. Talvez o vendedor lhe tivesse vendido a ideia de uma casa e, após a vistoria, ele achasse que o vendedor só poderia estar a falar de outra habitação que não aquela em que se encontrava.

Atravessou o espaço aberto que constituía a sala de estar e de jantar e olhou, muito discretamente, para o instrumento musical à esquerda e sorriu perante o pensamento que lhe atravessou o emocional cérebro! “Começou como uma melodia mas depressa se transformou em thrash metal que abominava, apesar de ser grande fã de heavy metal!” – numa conclusão só sua: por vezes o estilo de música até pode ser semelhante mas os solos de guitarra, esses gestos tão egoístas, deixavam sempre transparecer a verdade.

Mentalmente sentia-se um baterista de grande nível – muito embora tivesse os pés sempre com o ritmo correcto, sem afectar o ritmo diferente das mãos, o som que saía ainda não era a verdadeira essência do que pretendia. Saiu do “sonho acordado”, suspirou com tantas infantilidades que, não só mas também, ali havia presenciado e, de um só salto, abriu a pesada porta da casa e saiu – sem ruído, gentilmente encostando a porta até sentir o trinco da fechadura a impedi-lo de voltar.

Respirou fundo – fazia sempre este exercício para estimular o pulmão e, com um bocadinho de sorte, o músculo que se encontra ao lado do pulmão esquerdo! Desceu os degraus de pedra – a pedra, naquele edifício, pecava por escassa, tendo em conta sobretudo a frieza que aí havia conhecido, esboçou um sorriso aberto e recordou que até naqueles degraus havia a recordação de pretensos erros seus!

Exclamou “Foda-se!”, baixinho o suficiente para que a memória ficasse gravada no músculo anteriormente mencionado, fez uns quadradinhos mentais enquanto dava uma gargalhada para dentro e, de maneira involuntária, fez um coração com as mãos de maneira a abrir o portão com um sorriso – a expressão facial que mais o caracteriza.

Não fugia! Essas fugas estavam sempre reservadas à parte irresponsável da obra. Andou, tão lentamente quanto o gozo interior que sentia! Ainda não havia chegado à esquina e já ouvia o ruído de alguém a fazer as malas. Não pestanejou sequer e, numa rápida e muito breve reflexão mental, sorriu…era o costume, só isso.

A partir desse dia foi feliz – 12/4/2021

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