Cheguei junto da praia para tentar perceber que ruído era aquele…soava como vidro a raspar em vidro mas, após analisar mais atentamente, percebi que se tratava de uma manifestação de grãos de areia.
Do lado do mar estavam os grãos mais românticos e despreocupados e, já junto às cercas que preservam as dunas, havia os grãos mais racionais e afastados do romantismo. No meio havia pedaços de vidro – obtida pela fusão dos grãos mais acalorados – e ninguém arbitrava a revolução de vidro que se avizinhava!
Caminhei lentamente para me aproximar do terrível cenário que os meus olhos testemunhavam, passando pelo grão mais curtido do mundo que, na cova de areia, comia pipocas e observava o espectáculo…divertido acima de qualquer outro grão de areia com que anteriormente me tenha cruzado – ofereceu-me pipocas, um pouco do sumo que bebia pela palhinha e convidou-me a sentar ao lado dele.
Achei mais seguro ter a companhia de alguém que fazia parte da sociedade que os meus olhos testemunhavam estar a digladiar sem tréguas. Agradeci o que me foi oferecido mas a minha curiosidade era bem maior do que o minúsculo pacote de pipocas e sumo que o grão de areia ia abatendo – sôfrego, com uma expressão alucinada e mascando de boca aberta!
“É por causa de um casal de namorados”, exclamou o curtido, por entre pipocas e uma sorvidela do sumo.
Eu não fazia ideia que os grãos de areia formavam casais pelo que arrisquei perguntar:
“Há muitas discussões entre casais de grãos de areia?”
O grão de areia curtido olhou-me, muito lentamente, percorrendo a minha silhueta, da testa aos mindinhos, e exclamou:
“É também por tua causa Henrique.”
Se todo o cenário já se assemelhava estranho, estou certo de que conto com a solidariedade de V. Exas quando afirmo que fiquei perplexo! O grão de areia parou de olhar para mim e, terminando o sumo e as pipocas, levantou-se e eu, temendo ficar sem saber toda a verdade, segui-o até uma área de reciclagem e pedi-lhe para aprofundar o que tinha afirmado e ele, sem cerimónias, exclamou:
“Os grãos de areia estão a discordar em relação ao dia em que foram catupultados para dois belos corpos que eles achavam iriam ser o eterno porto de abrigo deles. De um lado estão os grãos que pretendem que o fluxo da comunicação seja o mais rápido possível e, do outro lado, os adeptos de Marconi e da comunicação por impulsos.”
A minha expressão corada deixou a nu qualquer tentativa de ocultar o que me ia na cabeça. Recordava o engraçado de todo esse dia e a empatia superior que unia os corpos. O detalhe de não existir detalhe que nos separasse, o abstrairmo-nos ao ponto de, mergulharmos juntos numa vaga que nos uniu ainda mais. Ou apenas molhou, julgava eu, até presenciar a manifestação dos grãos de areia.
Peguei no grão de areia curtido e, juntos, caminhamos até junto da torneira do lava pés. Ele, que era de raciocínio rápido, percebeu imediatamente o que se ia passar e deu uma sonora gargalhada. Carreguei na torneira do lava pés e a água começou a fluir. Libertando o pé direito da havaiana fui dirigindo a água para a manifestação que ameaçava transformar as praias do mundo em formações de perigoso vidro. Aos poucos os grãos de areia foram esfriando e, sem atingirem os 1250 Celsius, deixou de haver ajuntamentos de vidro. Eu e o grão de areia curtido trocamos um sorriso muito aberto e uma gargalhada sem paralelo no universo. Não havíamos vencido ou sido derrotados! Tão só e apenas resolvemos, pacificamente, uma manifestação que ameaçava transformar a face da terra, tal como a conhecemos.
O final da história a ti pertence – 5/3/2021
