Estava eu sentado na esplanada quando ele chegou. Exclamou “Devo estar a ficar maluco” e eu, com uma boca aberta de espanto, apenas respondi “Ah?” ao que ele imediatamente respondeu “Eu sei que sou maluco, mas não precisas de puxar por mim para que o diga”. Duas gargalhadas explodiram naquele quase silencioso final de tarde – apenas quebrado pelo ruído de algumas gaivotas, que pairavam sobre nós como pedinchando alguns tremoços e um pouco de cerveja.
Era dia de desabafos e, enquanto profissionais do amigável desabafo, os dois sabíamos perfeitamente o que esperar um do outro. A amizade tem aquele dom de nos dar a conhecer a pessoa amiga – as suas rotinas, os seus tiques, suas virtudes e defeitos, forma de contornar uns assuntos e de enfrentar outros. A cerveja chegou, sem ter sido pedida; os tremoços seguiram-se como se estivéssemos perante uma rotina de muitos anos. Quem nos servia era também um amigo – que sabia, de antemão, que no final dos aperitivos nós iríamos contestar a conta, refutar sequer ter participado no consumo de uma das cervejas que nos era apresentada ou que algum dia houvéssemos sequer provado os tremoços – fazia tudo parte de uma coreografia que, jamais ensaiada, nos levava sempre ao mesmo desfecho.
Após a constatação de que a sede é uma virtude e deve ser saciada, eis que os dois amigos se levantavam e, com a promessa de voltar muito em breve, dirigiram-se para o restaurante onde o arroz de polvo esperava por eles. O grande desafio: qual o acompanhamento certo com o arroz de polvo? Misturar vinho com cerveja pode tornar-se um desafio insuperável à medida que os anos avançam e, enquanto um se defende e opta por manter-se na companhia da cevada de Leça do Balio, o outro faz uma incursão nas uvas esmagadas e apuradas em cascos de uma qualquer madeira. Já não debatem qual a madeira que terá apurado o vinho, mas sim a bela noite que a varanda lhes proporciona.
Não resistem a um café no final da refeição – muito embora saibam que já não têm 18 anos e os efeitos da cafeína poderão ser mais prolongados. Esta não é uma noite defensiva…é dia de desabafos, lembram-se? Olham para a adição de todos os elementos do jantar e, sem ousar sequer contestar o olhar da senhora que lhes entregou a conta, pagam o valor sem esquecer uma bonificação que lhes permita lá voltar e ter o tratamento acolhedor a que estão habituados. Descem as escadas e o patrão da casa coloca-lhes uma questão sobre o Futebol Clube do Porto – algo também tradicional nestas “incursões ao arroz de polvo” – que sabem que vai demorar a responder. Há que usufruir das cervejas que são gentilmente colocadas no balcão, reunir consensos na resposta e avançar.
Voltam ao local onde inicialmente se encontraram. A nortada afasta-os do muro e coloca-os na mesa do meio – uma fila atrás de onde começaram. Estão animados, embalados e contentes por estarem juntos. O arroz de polvo estava bom, a cerveja e o vinho evitam qualquer rouquidão na voz e o meu amigo pergunta-me “Ouve lá, porque é que concordaste comigo quando eu me apelidei de louco?” …, entretanto, e por entre gargalhadas, chegam dois finos! A noite está salva…